segunda-feira, 30 de abril de 2012

"Se o RAP se entregar a favela vai ter o quê?"

Sex, 27/04/12 11h11
emicida
Emicida participou no fim do ano passado de um “documentário” produzido pela Nike. Na verdade, se trata de uma campanha publicitária para divulgar um tênis da marca. Não escrevo este artigo para dizer que o rapper se vendeu e blablablá, mas para provocar uma reflexão acerca do seu empreendimento. Não afirmo que se vendeu porque não acho que esteja presente em sua obra uma visão que vá contra a ideia de inserção na campanha. E, se parece estar, talvez seja uma reflexão mais elaborada sobre as críticas do rapper do que ele mesmo conseguiu fazer, entrando em questões essenciais que podem não ter sido levantadas por ele ao fazer tais críticas. O que não o torna contraditório, mas, talvez... ingênuo. Ou talvez não.
         Confesso que me senti incomodado em ver a tal propaganda. O que pude pensar foi algo como “esses filhos da puta (burgueses, empresários, detentores do poder) conseguem se apropriar de tudo mesmo, para garantir o sucesso de seus negócios (lucro). Mais uma vez, conseguiram”. Não que não haja outros exemplos no próprio Rap, como D2 que, hoje. faz apologia à riqueza após ter tido uma carreira de destaque no Planet Hemp cantando músicas com letras que se opunham a opressão _parto do princípio de que, para ser rico, é preciso oprimir indivíduos, para que produzam o que você não consegue produzir, mas deseja acumular. Quando falo que os burgueses conseguiram, não me refiro apenas a contratar seus modelos, mas disseminar suas ideias entre as pessoas, convencê-las. Também não creio que seja tão consciente, minuciosa, essa disseminação.
          Com a minha crítica do rap “ter sido dominado” pelos empreendedores, não estou choramingando que não possam fazer isto por ser uma linguagem que não os pertence... Vejo as expressões artísticas sem fronteiras, não são exclusividade de um nicho _não posso usar tal estilo de roupa porque pertence a um grupo x ou y, ou não posso criar tal tipo de música porque pertence a tal comunidade, e estou excluso disto_ simplesmente porque este nicho só as sustenta, não as cria. Quem as cria é um ou outro, dentro deste grupo, que tem sensibilidade para isto. Por que ter o direito à exclusividade de algo que nem mesmo fui eu quem criou? Mas grande parte da sociedade insiste em segregar tais expressões. O problema que percebo nesta “dominação” do RAP é que ingenuidade de algumas pessoas, que parecem esboçar certa preocupação com o rumo da humanidade, chega ao ponto de colaborarem para manter um sistema opressor; que abram mão de seus ideais na hora em que o poder bate em sua porta; ou, na pior das hipóteses, considerar que elas são cínicas e, por isto, ajudam a te convencer, através de mensagens que parecem libertárias, a mover a engrenagem que mantém este sistema.
          Mas voltando à propaganda... ops, documentário! Nela aparecem, além do Emicida, Raulzito, Pixote, Damiris, Toddy e MC Xará _artistas e esportistas que desconheço o trabalho, mas creio terem em comum com o rapper, pela proposta do vídeo, o fato de terem saído do gueto. A ideia que captei no documentário foi a de que se você se esforçar, correr atrás dos seus sonhos, trabalhar para isto, você conseguirá concretizá-los. Bom, em nenhum momento, a propaganda deixa isto claro, que você vai “conseguir” caso se esforce, mas faz parecer que com persistência é fácil. Inclusive o nome do vídeo reforça esta ideia: É POSSÍVEL.
          Entendo esta ideia de que você pode “vencer na vida” como perversa, pois faz com que as pessoas tenham a ilusão de que há espaço para todos ascenderem economicamente, de modo significante, o que não é verdade. Não há como nós todos, nem mesmo a maioria, enriquecermos a ponto de nos tornarmos "patrão", pois para isto teríamos que dividir a riqueza, que deixaria de ser riqueza; e, se fosse possível todo mundo ser abastado, quem produziria as coisas que garantem os luxos e privilégios? A ideia do vídeo serve para conformar as pessoas a não questionarem a riqueza de outros, pois um dia elas podem se tornar ricas também, garantindo com isto a manutenção do poder econômico como é. Outro problema é que elas, iludidas com a possibilidade de ascensão, têm maior motivação para trabalhar e produzir mais. O que, no final das contas, equacionando o trabalho de todas e o quanto algumas ascenderam, não compensa o investimento, mas faz com que seus patrões, sim, lucrem mais. Isto acontece porque as pessoas pensam individualmente, não em coletivo. É como jogar na loteria: o risco de ficar rico não vale o investimento, pensando no número de jogadores e quanto eles gastam; vale mesmo, no fim das contas, é para o empreendedor que vende o bilhete.
          Intrínseca ao desejo de ascensão, que propagandas como esta reforçam, está a idéia de que ser livre é ocupar o papel do dominador, do que explora, dificultando algum movimento num sentido de libertação dos oprimidos. Ao pensarmos na liberdade como a dominação, não reconhecemos outros oprimidos como iguais, como companheiros, mas como aqueles que temos que trabalhar para dominar, o que impossibilita qualquer acordo, motim, revolta, contando com uma ação conjuta a eles.
          Enfim, esta é a ideologia que acho que o vídeo carrega, junto com ela vem também de brinde um tênis da Nike, ou melhor: o desejo de ter aquele tênis. Por quê?! Porque é legal, a Nike é parceira de gente legal e descolada. E tudo isto com a ajuda do RAP, aliás, do RAP não, de um rapper. Como diria o próprio Emicida, em uma de suas letras, “Se o rapper se entregar, a favela vai ter o quê?”. Acredito que não é do desejo de possuir um “Nike” o que ela precisa.
Fonte: Por Rafael Barros no Overmundo

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